Voce acha provavel que os habitantes da nova terra

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Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! Primeiramente dum grande monte, mui alto e redondo; e doutras serras mais baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos: ao monte alto o capitão pôs nome – o Monte Pascoal e à terra – a Terra da Vera Cruz.
Dali avistamos homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos, por chegarem primeiro.
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Nas mãos traziam arcos com suas setas. Vinham todos rijos sobre o batel; e Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os pousaram.
E estando Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos, por mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro para isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro; e tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. Trouxe-os logo, já de noite, ao Capitão, em cuja nau foram recebidos com muito prazer e festa. 
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. 
Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar. 
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, bem vestido, com um colar de ouro mui grande ao pescoço, e aos pés uma alcatifa por estrado. Sancho de Tovar, Simão de Miranda, Nicolau Coelho, Aires Correia, e nós outros que aqui na nau com ele vamos, sentados no chão, pela alcatifa. Acenderam-se tochas. Entraram. Mas não fizeram sinal de cortesia, nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Porém um deles pôs olho no colar do Capitão, e começou de acenar com a mão para a terra e depois para o colar, como que nos dizendo que ali havia ouro. Também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata. 
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraram-lhes um carneiro: não fizeram caso. Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela: não lhe queriam pôr a mão; e depois a tomaram como que espantados. 
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel e figos passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa provaram, logo a lançaram fora. Trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram fora. 
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhas dessem, folgou muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão, como dizendo que dariam ouro por aquilo. 
Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não o queríamos nós entender, porque não lho havíamos de dar. E depois tornou as contas a quem lhas dera. 
Então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram, quedaram-se e dormiram.
GLOSSÁRIO
achamento: forma que, no século XVI, era mais usada que "descobrimento". 
batel: pequeno barco usado para navegar do navio até a terra e vice-versa. 
braça: antiga medida equivalente à extensão que vai de uma mão aberta à outra, em um adulto com os braços estendidos horizontalmente para os lados. 
confeição: confecção. 
esquife: pequeno barco de mesma utilidade que o batel, porém menor que este. 
haver vista de: avistar. 
horas de véspera: fim da tarde. 
mar de longo: mar ocidental. 
oitavas: período de oito dias durante os quais é celebrada uma festa religiosa. 
prumo: instrumento constituído de uma peça de metal ou de pedra, suspensa por um fio, utilizado para determinar a direção vertical. 
alcatifa: tapete. 
almadia: embarcação comprida e estreita, fabricada com um só tronco de árvore. 
beiço: lábio. 
Capitaina (mesmo que capitânia): em um conjunto de navios, aquele em que se acha embarcado o comandante (capitão). 
corredio: liso. 
coto: objeto de pequenas dimensões. 
de sobre pente: de leve, por alto. 
magoar: ferir, machucar. 
mancebo: jovem, moço. 
mão travessa: medida equivalente à largura da palma da mão. 
míngua: falta. 
obra de: cerca de. 
roque de xadrez: a torre do jogo de xadrez. 
terra chã: terra plana. 
sol posto: pôr do sol. 
solapa: cavidade encoberta, escondida de modo que não se consegue ver. 
tosquiado: que tem o cabelo cortado rente. 
toutiço: parte posterior da cabeça, nuca. 
vergonhas: os órgãos genitais humanos. 
1. A Carta de Pero Vaz de Caminha apresenta trechos descritivos e trechos narrativos. 
a) No trecho citado, que elementos (lugares, pessoas) Caminha descreve ao rei? 
b) Resumidamente, que acontecimentos e ações dos portugueses e dos nativos são narrados? 
Em sua carta ao rei de Portugal, Caminha relata o que os navegantes portugueses viram e fizeram em sua chegada às novas terras. Portanto ela pode ser classificada como relato de viagem. Ao ler um relato de viagem, ficamos conhecendo não só o povo e a cultura do lugar visitado, mas também a visão de mundo daquele que viaja e faz o relato. 
2. A carta do achamento é um dos poucos documentos de que dispomos para saber como foi a chegada dos portugueses às terras que hoje fazem parte do Brasil e como os indígenas os receberam. De acordo com o trecho lido, a frota portuguesa foi recebida com hostilidade?
3. O texto de Caminha revela que os portugueses se surpreenderam com o comportamento dos indígenas e que eles tinham algumas expectativas em relação à nova terra. Escreva as deduções que podem ser confirmadas pelo conteúdo da carta. 
a) A cor da pele dos habitantes da nova terra e o fato de andarem nus chamam a atenção de Pero Vaz de Caminha, que resolve relatar essa observação na carta. 
b) Caminha surpreende-se com a falta de cerimônia dos dois nativos para com o capitão (Cabral), sem imaginar que a hierarquia dos tripulantes portugueses não tinha validade alguma para eles. 
c) O escrivão percebe e valoriza o fato de que os portugueses estão sendo recebidos pelos habitantes do lugar de maneira pacífica, e essa percepção ganha grande destaque em sua carta.
d) O fato de os dois nativos apontarem para o colar de ouro do capitão e para o castiçal de prata é interpretado pelos portugueses como uma possibilidade de que esses minérios pudessem ser encontrados nas novas terras.
4. Você acha provável que os habitantes da nova terra também tenham estranhado o comportamento dos portugueses? Explique

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